Da última vez que estive em Amsterdã, tentei visitar a casa-museu de Anne Frank. Não consegui. Os bilhetes estavam esgotados para os próximos meses. Leu bem, leitor. Meses.
Segundo parece, o último refúgio da adolescente judia recebe mais de 1 milhão de visitantes todos os anos. A culpa é do diário, que já vendeu dezenas de milhões de exemplares em todo mundo.
Mas a escritora Dara Horn, no seu perturbante "People Love Dead Jews" ("as pessoas amam judeus mortos"), conta uma história exemplar: anos atrás, um funcionário do museu tentou usar o seu quipá no trabalho.
A direção foi contra e recomendou que ele usasse o adereço debaixo de um boné de beisebol. Por uma questão de "neutralidade".
Tem a sua piada: os guardiões da memória de Anne Frank ordenando a um judeu que voltasse a esconder o seu judaísmo.
Provavelmente, alguém não gostou da piada e, após quatro meses de debate interno, o uso do quipá foi permitido.
São episódios como esse que levam Dara Horn a formular a sua hipótese: as pessoas gostam de judeus, sim, mas apenas se eles já estiverem mortos.
Aliás, para testar a sua hipótese, a escritora pede-nos para imaginarmos uma Anne Frank que, milagrosamente, sobrevivera ao Holocausto.
E que, em plena velhice, estaria disposta a partilhar com o mundo as suas experiências em Auschwitz ou Bergen-Belsen. Haveria quem a escutasse, sem dúvida.
Mas 1 milhão de pessoas todos os anos? Bilhetes esgotados durante meses?
O fascínio com Anne Frank explica-se pelo seu precoce desaparecimento. Mas também pela mensagem "inspiradora" que ela deixou no seu diário: a crença de que a humanidade é essencialmente boa, apesar de ter sido essencialmente má para com ela.
Por outras palavras: gostamos de Anne Frank, acusa Dara Horn, porque ela nos absolve de qualquer responsabilidade.
O mesmo acontece com Elie Wiesel: antes de publicar "A Noite", essa meditação teológica sobre o silêncio e o abandono de Deus ante a tragédia do Holocausto, Wiesel tinha já publicado uma primeira versão da obra em ídiche.
Em "E o Mundo Ficou em Silêncio", a responsabilidade pelos crimes era atribuída a entidades mais terrenas, como os vizinhos, os colaboradores, os nazistas. Enfim, eu e você. O sucesso só aconteceu com "A Noite".
No fundo, gostamos de obras sobre o Holocausto, desde que elas tenham uma mensagem "positiva". Essa é a razão, acrescento eu, pela qual as massas adoraram "A Vida É Bela", de Roberto Benigni, e não "Filho de Saul", a obra-prima de László Nemes.
Claro que a hipótese de Dara Horn –as pessoas só gostam de judeus mortos e bondosos– também conhece suas exceções. Os judeus podem estar vivos, desde que sejam gênios, admite ela.
Que o diga o jornalista Varian Fry, que em 1940 e 1941 partiu para Marselha com o fino propósito de salvar a "civilização europeia". Como? Ajudando na fuga de centenas de escritores, artistas ou cientistas perseguidos pelos nazistas.
De Hanna Arendt a Marcel Duchamp, de Max Ernst a Claude Lévi-Strauss, de André Breton a Marc Chagall, a lista é longa.
Mas não será também uma forma elitista de eugenia intelectual? Salvemos os gênios, deixemos os outros para trás?
A pergunta acabaria por perseguir Varian Fry até o fim dos seus dias.
Ler Dara Horn seria sempre uma experiência perturbante. Mas ela é especialmente perturbante quando a Europa volta a mergulhar no ódio antissemita com uma fúria assustadora: estrelas de Davi pichadas nos prédios, ataques a lojas, agressões a judeus na rua, uma mulher esfaqueada em Lyon e a suástica pintada na porta de sua casa.
Dizem que o motivo é a guerra em curso entre Israel e o Hamas. Motivo ou pretexto?
Obviamente, pretexto: o antissemitismo começou logo a borbulhar com as primeiras notícias dos massacres... em Israel.
George Orwell explica essa dissonância cognitiva muito bem. Em 1945, quando os ingleses viram as primeiras imagens do Holocausto, Orwell lembrava uma simpática dona de casa que reagiu assim: "Por favor, não me mostre essas fotos, elas só me fazem odiar os judeus ainda mais".
Os ataques em curso não são contra "sionistas", votantes de Netanyahu, fanáticos religiosos que apoiam os assentamentos ilegais ou genocidas antipalestinos. São ataques contra judeus só pelo fato de serem judeus.
Mas não há que desesperar: se a escalada antissemita continuar rumo ao impensável, tenho a certeza de que um dia estaremos visitando as casas agora atacadas. Os proprietários só precisam de nos deixar mensagens "positivas" e "inspiradoras" sobre a beleza da bondade humana.
Fonte: Folha de S. Paulo, 7/11/2023