Crédito: CIP/Bizarro
No coração da comunidade judaica do Porto, uma natural de Brooklyn é carinhosamente chamada de “a chefe”. Aos 95 anos, Marilyn Flitterman frequenta regularmente a sinagoga central, toca piano num grupo de jazz e dirige seu automóvel conversível todos os dias. Ela é uma inspiração para uma comunidade que permaneceu adormecida durante quase um século, mas que, em pouco mais de uma década, passou por uma regeneração em termos religiosos, culturais, educacionais e filantrópicos. Flitterman conta o que viu quando chegou ao Porto em 1970: “Em vez de um milhão de judeus, havia a minha família, mais três ou quatro famílias, só isso”.
A sede da comunidade judaica do Porto, uma das sinagogas mais majestosas da Europa, de nome Kadoorie Mekor Haim, é hoje conhecida pelo Yom Kippur que celebra todos os anos, com quase mil pessoas gritando como uma só. Membros de trinta nações e muitos jovens animam esta atmosfera maravilhosa. Uma visitante judia que esteve em mais de cinquenta e cinco países exprimiu por escrito o que sentiu: "Escrevi a vários amigos e familiares para lhes contar o quanto estava profundamente comovida. Acho que nunca ouvi orações e cantos tão apaixonados antes em uma sinagoga. Não foi apenas o poder das vozes orando em uníssono que me comoveu tão profundamente, foi também o simbolismo de tantos judeus reunidos numa sinagoga em um país fortemente impactado pela Inquisição."
O que mais chama a atenção nesta comunidade é o sucesso do seu trabalho na promoção da cultura e do conhecimento da história judaica. O “Dia Europeu da Cultura Judaica”, celebrado há duas décadas no primeiro domingo de Setembro de cada ano, adquiriu maior visibilidade a partir do momento em que a Comunidade Judaica do Porto decidiu celebrar a ocasião, mostrando uma vida judaica plena: sinagogas, museu do Holocausto, museu judaico, cinema, filmes de História, galeria de arte, restaurantes kosher, um coro litúrgico, conferências, lançamento de livros e muito mais.
Não é habitual uma comunidade judaica supervisionar um museu do Holocausto, ainda mais um museu que em apenas três anos acolheu 150 mil adolescentes num país que não conta mais de um milhão. Portugal manteve-se neutral durante a Segunda Guerra Mundial e é mais conhecido por ter expulsado os judeus e pela Inquisição que vigorou entre 1536 e 1821. A história da humanidade nunca conheceu uma perseguição tão prolongada devida a uma causa tão inocente.
Crédito: CIP/Bizarro
A comunidade ergueu um museu judaico para relembrar os tempos inquisitoriais e sobre o mesmo tema produziu um filme intitulado “1618”, cujos direitos foram vendidos a companhias aéreas de países árabes e muçulmanos e à Samuel Goldwyn Films nos Estados Unidos. Porém, a comunidade mostrou-se insatisfeita. O monopólio de distribuição na indústria cinematográfica provou que não é possível a todos terem acesso fácil a este filme. E o objetivo da comunidade é promover a história judaica em todas as suas dimensões.
O mais recente filme documentário da comunidade estreou em abril deste ano – “1506 – O Genocídio de Lisboa”. É gratuito e está disponível no YouTube e no Vimeo em inglês, francês, espanhol, português e hebraico. A última legenda desta obra cinematográfica diz que o massacre “não é mencionado nos currículos escolares e foi esquecido”. Na verdade, poucos sabem hoje que, antes do Holocausto, a capital portuguesa foi palco de uma das maiores operações de genocídio na Europa contra os judeus. Quatro mil pessoas de todas as idades foram mortas e queimadas em fogueiras.
Michael Rothwell, neto de judeus alemães assassinados em Auschwitz, é o diretor dos dois museus da comunidade. Os nomes dos seus avós estão inscritos na “sala memorial" do museu, juntamente com os nomes de milhares de vítimas. Falando de um outro memorial, este no museu judaico, onde estão inscritos os nomes de quase mil pessoas perseguidas pela Inquisição no Porto, o diretor explica que “a vítima mais nova tinha dez anos, a mais velha 110. Muitos Espinosas têm os seus nomes neste memorial, com datas. Alguns anos depois, Baruch Espinosa nasceu em Amsterdão”.
Crédito: CIP/Bizarro
A comunidade tem protocolos com escolas de todo o país, os museus não cobram entrada e muitas vezes a comunidade custeia o transporte das crianças em idade escolar, que de outra forma não teriam condições de pagar a viagem. Ambos os espaços museológicos desempenham um importante papel no domínio nacional, assim como a sua galeria de arte, a maior biblioteca judaica da Península Ibérica e outros equipamentos culturais. Os filmes de história, por outro lado, visam atingir o público internacional.
A inauguração do cemitério judaico do Porto, em 2023, foi um acontecimento de imenso simbolismo. O espaço verde, incluindo o que lembra o Monte das Oliveiras, chama-se Campo da Igualdade Isaac Aboab, numa referência à maior autoridade judaica do mundo quando os judeus foram expulsos da Espanha.
O rei da época, D. João II, decidiu lucrar com a hospitalidade que Portugal forneceu aos judeus castelhanos e exigiu a cada pessoa a soma de oito cruzados, sob pena de ser escravizada. Muitos não conseguiram pagar e, como pena, em 1493 o rei ordenou o rapto de 2000 crianças judias com menos de oito anos de idade e enviou-as com criminosos empedernidos para a ilha africana de São Tomé, a 7.500 km de Lisboa. Estes foram os factos. Agora a comunidade judaica do Porto está a produzir o documentário “As 2000 Crianças Judias Exiladas” que terá estreia ainda em 2024.
Recentemente a comunidade publicou o livro “Dois Milénios da Comunidade Judaica do Porto, Cronologia 1923-2023” que explica a história de uma comunidade milenar que foi expulsa no final do século XV e, após séculos de Inquisição, foi oficialmente refundada em 1923. A sinagoga central foi erguida graças a doações da comunidade sefardita mundial e aos esforços de um capitão do exército português – Barros Basto – que foi expulso do exército em 1937 por ter circuncidado alguns dos seus alunos, um ato considerado imoral pelo tribunal militar. Basto é mais conhecido como o “Dreyfus português”, dadas as semelhanças entre o seu caso e o do capitão francês Albert Dreyfus, seu contemporâneo.
Crédito: CIP/Bizarro
A comunidade judaica da época, toda ela ashkenazita e com cerca de quarenta pessoas no total, considerou a perseguição ao líder um sinal de que os tempos eram perigosos. A comunidade quase passou à clandestinidade. Nas décadas seguintes, a grande sinagoga praticamente não teve atividades e manteve-se em silêncio. Esta sequência de acontecimentos deu origem a um filme baseado em factos reais, “Sefarad”, que a comunidade produziu há alguns anos e que está disponível no YouTube.
A sinagoga era quase um edifício fantasma no início de 2012, quando os poucos membros da comunidade restauraram o enorme edifício e convenceram um hotel vizinho a abrir um restaurante kosher para receber turistas judeus. O hotel concordou em pagar a um rabino de Israel para organizar este trabalho e, com esta ação, a comunidade adquiriu um hotel, um estabelecimento para servir comida judaica, turistas judeus e um líder religioso. Ao mesmo tempo, a comunidade solicitou a uma universidade local que oferecesse cursos de medicina dentária para jovens estudantes franceses. Hoje, a comunidade conta com 300 jovens estudantes de França e criou uma segunda sinagoga para eles, gerida pela Chabad Lubavitch, que mandatou para o efeito um casal sefardita.
Além disso, a B’nai B’rith Portugal, um dos ramos da comunidade judaica do Porto, inclui membros de todas as áreas de Portugal e de todos os continentes. A organização não só promove os direitos humanos em geral, mas também os direitos humanos dos judeus, que são frequentemente esquecidos. O trabalho é realizado em conjunto com o Observatório Internacional dos Direitos Humanos sediado em Portugal. Recentemente, ambas as organizações prestaram homenagem a Shimon Peres e ao Rebe Menachem Mendel Schneerson, como “referências para o bem da humanidade”, e publicaram um livro sobre direitos humanos escrito por jovens judeus de 40 países.
Crédito: CIP/Bizarro
Poder-se-ia supor que o Estado português estaria orgulhoso do desenvolvimento da sua comunidade judaica, tendo em conta que a Europa tem um plano para promover a vida judaica. Em 2022, a ministra da Justiça (a mais influente procuradora de Lisboa) enviou denúncias anónimas, que afirmava ter recebido, aos seus colegas do Ministério Público. Foi tudo quanto bastou. A sinagoga foi invadida ilegalmente pela polícia de Lisboa.
De nada valeu o facto de seis meses depois o tribunal ter considerado que a operação policial tinha sido “baseada em nada”. Os danos haviam sido irreversíveis e a comunidade já fora caluniada em 150 países e especialmente em Portugal, onde foram produzidas dezenas de milhares de mensagens de ódio e escritos discriminatórios. Listas de empresários da comunidade foram expostos num jornal de esquerda e pichações foram espalhadas na sinagoga e nos restaurantes kosher. Ameaças de bomba no templo central e no museu do Holocausto, manifestações contra os “senhorios sionistas do Porto”, “nem bombas, nem despejos”, “nem Haifa, nem Boavista” (a localização da sinagoga central) e assim por diante.
Em nome da comunidade, um dos mais conceituados advogados israelitas, Dr. Haim Katz, dirigiu uma queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos alegando que “A suposição, legal e fatualmente baseada em nada, de que a corrupção certamente existe quando um grupo de judeus prospera, está muito baseada em antigas calúnias antissemitas que historicamente atormentaram Portugal." O advogado exige uma reparação razoável pelos vastos danos causados.
Crédito: CIP/Bizarro
Há dez anos, quando lhe perguntaram por que razão o antissemitismo não existia em Portugal, Samuel Yanovsky, membro benemérito da comunidade judaica do Porto, respondeu simplesmente: “Porque não há judeus suficientes”. De família bielorrussa que fugiu dos pogroms da área, Yanovsky nunca esqueceu o dia em que assistiu à inauguração da Sinagoga Kadoorie Mekor Haim, em 1938, numa altura em que as sinagogas de toda a Europa fechavam as suas portas. Do alto dos seus 90 anos, ele acreditava que “a comunidade deveria investir na cultura, na história e na Chabad, porque eles têm muitos filhos e vão garantir a nossa continuidade enquanto povo individualizado.”
A Chabad, com sede em Nova Iorque, é uma organização com a qual a comunidade judaica do Porto coopera a vários níveis, em catorze países, incluindo Austrália, Índia, África do Sul, China e Ucrânia. Durante anos, refeições do Shabat foram servidas em muitos pontos diferentes do globo. Mikvaot, sinagogas e cemitérios foram construídos. Não é de admirar que a comunidade judaica do Porto tenha sido a principal patrocinadora do maior Centro Chabad da Europa, sediado em Cascais, perto de Lisboa, ao mesmo tempo em que continuou a reforçar o seu incrível desempenho na promoção da cultura judaica em Portugal.