Por Gabriel Senderowicz
(29 de janeiro de 2023 / JNS) Em 27 de janeiro, o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, fez as seguintes observações no evento anual do Dia Internacional de Memória ao Holocausto da ONU, na Sinagoga Park East: “Ao longo dos milênios, a perseguição aos judeus foi uma marca de sociedades apodrecidas. O meu país, Portugal, não é exceção. Na virada do século XVI, o rei Manuel I assinou o Édito de Expulsão de todos os judeus que se recusassem a se converter. Foi um crime cruel.”
“É motivo de grande alegria que os descendentes de famílias judias expulsas tenham desde então exercido o seu direito de readquirir a nacionalidade portuguesa”, acrescentou. “E é uma grande honra que em breve Lisboa tenha um novo museu dedicado à longa e rica história judaica de Portugal – o Museu Tikva. A dolorosa verdade é: ainda hoje, o antissemitismo está em toda parte.”
No dia em que estas palavras foram proferidas na Sinagoga Park East, cerca de 1.000 crianças e adolescentes reuniram-se no Museu do Holocausto do Porto, para acender velas às vítimas e pedir o regresso dos judeus a Portugal. No Museu do Holocausto, vimos jovens que realmente respeitam a comunidade judaica, não políticos com meros discursos de conveniência.
Se Guterres quisesse ver o regresso da vida judaica, da religião tradicional judaica e da cultura judaica ao seu país, teria falado do crescimento da comunidade judaica portuguesa nos últimos anos. Ali está o maior Centro Chabad da Europa (em Cascais), as sinagogas do Porto, o Museu do Holocausto do Porto, o Museu Judaico do Porto, o filme português mais premiado de sempre – que é sobre a Inquisição no Porto – os restaurantes, hotéis e centros de achdut do Porto e ainda o novo cemitério judaico do Porto.
Guterres, porém, não falou da vida judaica mas sim da morte, da “herança judaica” no futuro Museu Judaico de Lisboa que até hoje não passa de um desenho sobre papel.
Além disso, Guterres afirmou: “É motivo de grande alegria que os descendentes de famílias judias expulsas tenham desde então exercido o seu direito de readquirir a nacionalidade portuguesa”, mas esqueceu-se que esta lei já foi destruída pelo seu próprio Partido Socialista de uma forma que faz lembrar do antissemitismo soviético. O partido tentou acabar com todas as forças judaicas genuínas no país, a única comunidade judaica forte, o influxo de israelenses e a suposta “ameaça” representada por judeus ricos.
Apesar de seu ateísmo oficial e rejeição ao judaísmo, a União Soviética evitou destruir todas as suas sinagogas e comunidades judaicas, para não atrair má publicidade internacional. Manteve mais de 20 sinagogas como parceiras do regime, como as Grandes Sinagogas de Moscou, Leningrado e Odessa, enquanto destruía suas fortes comunidades.
Em Lviv, Kharkiv, Chernivtsi, Bobruisk, Smolensk e centenas de outras cidades, fortes sinagogas e comunidades foram fechadas, uma a uma, sempre da mesma maneira. Os soviéticos usaram a imprensa para associar as sinagogas a negócios supostamente ilícitos. Tais negócios foram descritos como imorais ou ilegais, para destruir essas organizações judaicas como promotoras da vida judaica.
A Comunidade Judaica do Porto enfrenta algo semelhante. Em março de 2022, foi alvo de uma ação policial de grande envergadura, que humilhou a comunidade tanto em Portugal como no mundo. A acusação era de que a Comunidade concedia certificados que afirmavam a herança sefardita de qualquer um que buscasse a nacionalidade portuguesa e estivesse disposto a pagar por ela. O Ministério Público e a polícia de Lisboa revistaram a sinagoga do Porto, o Museu Judaico e as casas de líderes judeus. O rabino-chefe foi detido apenas com base em denúncias anónimas que o acusavam de cometer furtos tecnicamente impossíveis, de corromper cartórios que nunca visitou e de ser corrompido por dois bilionários que não conhecia, um dos quais certificado pela comunidade judaica de Lisboa e o outro por sua comunidade judaica de origem. Pior ainda, a Polícia do Porto tinha recebido uma destas denúncias anónimas no ano anterior, concluiu que era infundada e recusou-se a abrir uma investigação criminal.
Em setembro, o Tribunal da Relação chegou à mesma conclusão da Polícia do Porto: todo o processo foi “baseado em nada”. Referindo-se às acusações como “uma generalização sem base factual”, o Tribunal perguntou: “Como alguém pode se defender apenas de generalidades?”
Antes da decisão do Tribunal da Relação, a Comunidade Judaica do Porto apresentou uma queixa contra as autoridades portuguesas junto da Procuradoria Europeia. Com apoio legal da European Jewish Association (Associação Judaica Europeia), a denúncia condenou o uso de poderes do Estado contra funcionários da comunidade judaica, a perseguição de benfeitores da comunidade judaica em geral, a disseminação de tropos antissemitas que ligavam os judeus à má conduta financeira, uma campanha de difamação que se arrastou por meses, uso da mídia para mobilizar a opinião pública contra a comunidade judaica e a exploração de pessoas sem escrúpulos para incriminar falsamente os indivíduos visados.
Há evidências de que o poder judiciário foi usado para atingir fins políticos, favores foram trocados entre elites poderosas, teorias da conspiração foram disseminadas, um jovem judeu francês alvo de ameaça de morte, pelo menos três arrombamentos em escritórios de advocacia e residências particulares, falsas acusações de tráfico de drogas e conexões ilícitas com interesses russos, o uso de denúncias anônimas forjadas e uma campanha difamatória coordenada envolvendo meia dúzia de jornalistas. Ninguém da comunidade escapou a esta campanha, desde os líderes religiosos e seculares ao curador do museu e ao porteiro. Todos eles tiveram suas reputações e honras severamente danificadas.
Em janeiro de 2023, por ocasião do seu centenário, a Comunidade Judaica do Porto publicou um livro sobre a sua história em que anunciava o “fim” do processo judicial em curso. O livro, agora publicado, já foi distribuído a governos relevantes e instituições internacionais. Regista que “algumas famílias judias recém-chegadas ao Porto já começaram a partir. Mais cedo ou mais tarde chegará o tempo em que as salas de oração da Comunidade, que hoje são três, ficarão vazias e os museus, que hoje estão cheios, morrerão. O som dos rituais judaicos agora cantados em uníssono por centenas de pessoas e a acolhida amigável e gratuita de milhares de classes escolares terão caído no esquecimento. A população de todo o país continuará a apontar o grande edifício da sinagoga como símbolo de materialismo, dinheiro e maus sentimentos”.
Quem conhece a história dos judeus sabe que uma comunidade judaica, coletiva ou individualmente, é sempre acusada de “pôr em perigo a pátria”, “explorar bens nacionais” e “abusar da confiança neles depositada”. Consequentemente, sofrem perseguições por parte das autoridades públicas, humilhação nacional e desprezo das massas. São poucas as palavras para descrever o que foi conseguido por um punhado de antissemitas em Portugal.
Gabriel Senderowicz é presidente da Comunidade Judaica do Porto.