O PJN conversou com David Garrett, membro da Direção da Comunidade Judaica do Porto, no evento de homenagem ao escritor judeu Andrew Smiler, realizado em Pedrógão Grande no domingo 15 de outubro. Diversas questões da atualidade em Portugal e no mundo estiveram em cima da mesa, desde logo a situação de extrema sensibilidade que se vive no Próximo Oriente.
(PJN) Como vê o massacre de 7 de outubro em Israel?
– Repetiu-se a História.
O Presidente Isaac Herzog disse, num discurso, que nem o Holocausto mostrou cenas de tão grande barbaridade e desumanidade concentradas.
– O discurso irrepreensível abarcou décadas recentes. Mas no passado houve bem pior. Basta lembrar o genodício de 1506 em Lisboa, que durou três dias e fez o triplo das vítimas.
O que pode fazer a comunidade judaica do Porto para ajudar Israel?
– Estão em execução, em tempo real, vários planos de ajuda a Israel que estão a ser coordenados por israelitas da nossa organização. Vimos amigos partirem para o combate sem saberem se um dia regressarão. Até os elementos não-judeus do nosso staff choraram a sua partida.
Nestes dias dramáticos, é perigoso viver em Israel?
– É perigoso viver. No mundo judaico, quando acordamos pela manhã, as nossas primeiras palavras bem o demonstram.
Como têm os jovens da comunidade acompanhado os desenvolvimentos terríveis?
– Na última semana, muitos deles, incluindo os meus filhos, decidiram que serão nacionais de Israel. Têm esse direito e dever. Todos querem ajudar com os seus talentos e forças. É comovente. Alguns nem sabem nadar.
Com tantos vizinhos adversos e perigosos, pergunto se Israel vai sobreviver uma vez mais, como em 1948, 1967 e 1973?
– Faça a história dos séculos. Para o povo judeu, a situação nunca foi melhor. Os Impérios assírio, babilónico, persa, grego, romano e muitos outros, já caíram. Sobreviveremos aos algozes de hoje, tal como o fizemos ontem e anteontem.
No massacre indescritível perpetrado pelo Hamas, já são conhecidos os nomes de sete sacrificados que detinham a nacionalidade portuguesa. Como os descreve?
– Pacíficos jovens, todos de famílias sefarditas tradicionais de comunidades do antigo Império Otomano e do Mediterrâneo.
A Comunidade tem revelado à imprensa as históricas ligações familiares desses jovens a Portugal. Porquê?
– Para não serem vistos como portugueses de segunda categoria. Um grupo doente bradou por mais de um ano que a comunidade do Porto não sabia o que era um judeu de origem sefardita.
Como viu a condenação universal dos grafitis pintados na sinagoga, na passada semana, relacionando Israel com o apartheid?
– Não tenho conhecimento de que políticos hajam falado no tema.
Mas não faltaram associações, embaixadas, pessoas individuais e jornais portugueses e estrangeiros a condenarem fortemente o incidente.
– Uns riscos numa parede são universalmente entendidos como antissemitismo. Usar a corrupção de Estado e jornalística para tentar destruir uma organização judaica forte e por causa disso, não.
O que está mal?
– Tudo. A palavra vaga antissemitismo deve desaparecer do vocabulário. As próprias definições geralmente aceites para a palavra antissemitismo não cobrem directamente situações bem mais graves do que aquelas que enunciam.
Como prefere tratar o tema não usando a palavra antissemitismo.
– Falando dos factos concretos. Do que quer falar?
Na passada quarta-feira, vimos um homem [ou mulher] agarrar numa lata de tinta, dirigir-se a um templo religioso e pintar uma mensagem política de agressão ao estado judeu, chamando-o de apartheid. O que é isto?
– Cegueira ideológica e ódio ao estado, cultura, religião e sucesso judaicos. Antijudaísmo tradicional, anti-israelismo e anti-sucesso judaico, pelo menos.
Israel é reconhecidamente um caso de sucesso judaico. Há 75 anos o pequeno estado só tinha símbolos, areia, camelos e inimigos...
– Tal como o meu ancestral, David, enfrentou os filisteus com uma pequena pedra, também parcos grupos de judeus e judias mal armados enfrentaram todo o mundo árabe horas depois da fundação de Israel. Um milagre, seguido de outro. Fizeram o deserto florescer, para não morrerem de fome. Construíram o nosso pequeno "Império" do nada. Em muitos patamares estamos ao nível dos Estados Unidos, que sempre absorveram os nossos melhores talentos; da Rússia, que tem 1/3 do território mundial; e da China, que comporta 1/4 da população do planeta.
Já têm alguma noção sobre quem possa ter sido o autor ou autora da façanha criminosa na sinagoga?
– Sabia do ofício. Pintava bem e lestamente este tipo de ofensa.
Disse há pouco que não viu políticos a falar sobre o incidente na sinagoga do Porto. Por que não apareceram? Acha que, se fosse noutra sinagoga, viriam todos a terreiro, como noutros países?
– Tóxica, eis a palavra que politicamente define a comunidade do Porto depois da propaganda organizada e caluniosa que foi feita nos últimos três anos. Voltaremos ao tema no futuro, com revelações interessantes.
Como tem sido a vossa relação com o coordenador do antissemitismo e da promoção da vida judaica, Pedro Bacelar Vasconcelos, indicado pelo ministério dos negócios estrangeiros português?
– Muito boa. A política ainda tem pessoas de grande calibre intelectual e humano.
Vasconcelos esteve na sinagoga e no museu judaico no Dia Europeu da Cultura Judaica, discursou aquando da inauguração do memorial das vítimas da Inquisição e foi entrevistado pelo canal i24. Qual foi a opinião dele sobre o evento?
– Não perguntamos. Não é preciso. Nenhuma comunidade na Europa tem a nossa obra cultural. Já convidamos o coordenador para discursar às centenas de adolescentes que habitualmente se concentram no museu da Shoá. E já o tivemos connosco nas celebrações de Yom Kipur.
Como é que um doutorado português altamente intelectualizado terá apreciado aquele ambiente arrebatador que vimos no Kipur?
– Não perguntamos. Não é preciso. Aquele ambiente mostra que o judaísmo é uma potência espiritual. Até Alexandre da Macedónia abriu os braços perante o Cohen Gadol.
No mesmo dia em que a sinagoga foi vandalizada, a direção da comunidade reuniu com o presidente da comunidade muçulmana e com o bispo, num evento acompanhado pelo presidente da assembleia municipal. O objetivo que tiveram em mente foi manter e reforçar as boas relações entre as comunidades religiosas portuenses?
– Sim. O terrorismo não se confunde com os palestinianos, nem os palestinianos com os muçulmanos. No Porto, as três comunidades abraâmicas e o município pretendem estar unidas rumo a um futuro comum.
Para um encontro inter-religioso desta natureza, para mais praticado num dia em que a sinagoga foi vandalizada, não teria sido bom convidar membros de outras comunidades judaicas nacionais?
– O evento era local e urgente. Não havia tempo útil para organizar algo de cariz nacional.
A Comunidade de Lisboa nutre também excelentes relações com as comunidades muçulmana, católica e outras...
– Sim, há muitas décadas consecutivas. Já o rabino Abraham Assor mantinha relações de grande amizade com os líderes das outras confissões, fazendo bem jus à história da comunidade judaica de Lisboa, que alimentou a chama judaica em Portugal desde o século XIX.
Judaísmo, catolicismo e islamismo, o que os une em Portugal?
– As três culturas têm uma longa história no território, antes mesmo de D. Afonso Henriques.
Na passada sexta-feira, discutiu-se o fim da lei dos sefarditas na assembleia da república. Qual é a sua perspectiva sobre esse acontecimento?
– A lei acabou em 2022 com a exigência de supostos bens herdados por aqueles cujas famílias foram de tudo esbulhadas. Não discuto o problema jurídico subjacente.
Falo do fim da lei em termos formais...
– A criação da legislação de 2013/2015 foi um acto soberano legítimo do Estado, tal como será o seu fim, que dispensava a operação falhada a que cinicamente se chamou “Porta Aberta”.
Um deputado na assembleia afirmou que a lei dos sefarditas não deve acabar só porque uma comunidade certificou pessoas “a troco de avultadas quantias”.
– O valor do emolumento é 10 vezes menor do que esse cavalheiro ganha para fazer essa figura.
Vão processá-lo?
– Há gente à espera, na fila da frente.
Lemos ontem a parashá de Bereshit. Entramos no nono ano de minian consecutivo em Shabat e Yom Tov. O que esperar das actividades comunitárias para este novo ciclo?
– Dentro de uma semana viveremos o dia 7 de Cheshvan. Na época do Segundo Templo, este era o dia em que se retomavam as actividades. Obviamente haverá novidades.