Comunidade Judaica do Porto avança para tribunal para reintegrar “Dreyfus português” no Exército

No ano do centenário da Comunidade Judaica do Porto (1923-2023), a organização decidiu forçar o Estado a reintegrar postumamente no Exército o seu fundador – Arthur Carlos Barros Basto –, um oficial português que foi declarado “imoral” em junho de 1937 por participar em operações de circuncisão e que na hora da sua morte exclamou “Um dia, far-me-ão Justiça”.

Acabou a paciência! Agora o Estado alega que o meu avô deveria estar vivo, com 136 anos, para ser ele próprio a pedir a reintegração póstuma”, afirma a neta do oficial, Isabel Barros, actual Vice-Presidente da Comunidade Judaica do Porto, que tem dado continuidade aos esforços da mãe e da avó para conseguir a reintegração do ente querido no Exército.

Durante décadas, os familiares mais próximos do capitão Barros Basto levantaram a sua voz contra a injustiça cometida, mas foi apenas em 2012 que a Assembleia da República considerou que o militar tinha sido alvo de perseguição político-religiosa e recomendou ao Estado que o reintegrasse no Exército. No ano seguinte, o próprio Exército declarou oficialmente que o oficial falecido poderia ser reintegrado postumamente no posto de coronel, cargo que deveria ter assumido em 2 de novembro de 1945 se não houvesse sido separado de serviço.

No entanto, apesar das decisões do Parlamento e do Exército, que levam já uma década, nunca recebi uma folha de papel afirmando a reintegração oficial do meu avô, que tem sido adiada indefinidamente pelo Estado, apesar de ao longo dos anos a Comunidade Judaica do Porto e a Liga Anti-Difamação terem escrito muitas vezes ao Governo e ao Presidente da República Portuguesa” – revela Isabel Barros.

O membro da Direcção da Comunidade Judaica do Porto para os assuntos jurídicos, David Garrett, explica que “correntemente o problema não é o Exército, mas sim o Estado, que tenta negar a legitimidade da neta de Barros Basto para o pedido de reintegração póstuma, alegando que deveria ser o oficial a fazê-lo, como se ele fosse eterno. Se não nos for dada razão nas próximas semanas, avançaremos para o tribunal administrativo português e, depois, se necessário, para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.”

Para tornar mais incompreensível a postura do Estado, em 2018 o Parlamento publicou uma lei que visava reintegrar no Exército, de facto ou postumamente, todos os militares injustiçados no tempo do Estado Novo. Isabel Barros conta que “o Bloco de Esquerda, partido do qual partiu a iniciativa legal, escreveu-me dizendo que finalmente o meu avô seria reintegrado e que ele era um caso paradigmático dos objectivos daquela lei. O Estado agora quer negar o espírito e a intenção do legislador, exigindo que o meu avô esteja vivo.”

Processo que destruiu Barros Basto

O processo contra Barros Basto na década de 1930 nasceu quando ele foi alvo de cartas anónimas dirigidas às autoridades portuguesas, acusando-o falsamente de homossexualidade. A polícia pôs-se em campo e logo declarou que as denúncias eram caluniosas, mas o Estado político tirou perverso partido disso. Isabel Barros acusa “agentes do Estado aproveitaram-se das cartas anónimas para intentar uma ação injusta contra o meu avô e, na falta de provas, condenaram-no ao afastamento do serviço por ter participado em operações de circuncisão de jovens alunos”.

Depois de ter sido expulso do exército português, Barros Basto passou o resto dos seus dias com amargura e tristeza. A sua filha Miriam escreveu que “quando ele chegava em casa, sentava-se e enterrava o rosto nos joelhos, perguntando o que havia feito para merecer um final tão triste”. Barros Basto nunca perdeu a esperança de ser reabilitado moralmente e reintegrado no Exército. “Antes de morrer ele exclamou: “Um dia hão-de fazer-me justiça” – contou Miriam.

Um filme sobre Barros Basto

A Comunidade Judaica do Porto produziu uma longa-metragem intitulada SEFARAD, que conta a história do capitão Barros Basto, apelidado de “o Dreyfus português”. Está disponível para visualização no Vimeo:

História de Barros Basto

O capitão Barros Basto converteu-se ao judaísmo em 1920 e juntamente com três dezenas de judeus da Europa Central e Oriental fundou oficialmente uma comunidade judaica organizada no Porto, mais de quatro séculos após a proibição do judaísmo em Portugal.

Entre 1927 e 1934, o Capitão tentou resgatar para o judaísmo oficial centenas de marranos (Bnei anussim) que viviam em território português. Os marranos eram descendentes de “cristãos-novos” (que haviam sido vítimas do Édito do Rei D. Manuel e da Inquisição) e praticavam uma religião própria que misturava rituais judaicos e católicos. “Para os ajudar a regressar ao judaísmo, o meu avô construiu uma escola judaica, criou um jornal e pediu aos judeus sefarditas do mundo inteiro para suportarem os custos da construção no Porto de uma grande Sinagoga – até hoje considerada a maior Sinagoga da Península Ibérica” – comenta Isabel Barros.

O plano de resgate dos Marranos não teve sucesso. Segundo Arnold Diesendruck, escritor judeu que viveu em Portugal durante décadas e escreveu o livro “Marranos em Portugal – 1920-1950”, “Os marranos queriam manter-se à parte do “mainstream” judaico, como grupo ‘mudeu’ [mistura de marrano com judeu], de velhas crenças já fortemente temperadas por 500 anos de cristianismo e sem ligações com o judaísmo tradicional, por mais liberal que este fosse. E isto o judaísmo não podia aceitar.”

Além do desinteresse dos marranos pelo judaísmo oficial, algo muito mais grave ocorreria em 1934 e 1936. Por força de denúncias anónimas caluniosas, Barros Basto foi separado do Exército e a Comunidade Judaica do Porto perdeu o seu líder carismático.

A neta Isabel refere que “o meu avô foi sempre o grande impulsionador do desenvolvimento da Comunidade em termos religiosos e culturais. O processo legal que lhe foi movido visou quebrar as suas forças e destruir a vida e a cultura judaica no Porto, o que aliás foi conseguido pelos antissemitas por setenta e cinco anos. Só na última década foi possível reabilitar a vida judaica no Porto. E então, em 2022 eu própria fui vítima de denúncias caluniosas que agentes do Estado iníquos mais uma vez aproveitaram. Desta vez chegaram ao ponto de invadir a Sinagoga, o Museu Judaico e até minha casa, mais do que repetindo a história sombria de meu avô."

A Comunidade Judaica do Porto hoje

A Comunidade Judaica do Porto é hoje composta por cerca de um milhar de pessoas de 30 países. Possui três sinagogas, um Museu do Holocausto, um Museu Judaico e restaurantes kosher. Neste ano de 2023, a Comunidade inaugurará o seu cemitério. O último foi destruído em 1497 depois do Édito de D. Manuel.