Das centenas de disputas territoriais actualmente em curso no mundo, apenas aquela que envolve Israel surge sempre, e não por acaso, enquadrada em termos legais. Mais do que enquadrada – reduzida a, e armadilhada em, termos legais. Em nenhum outro conflito ou disputa a questão legal é tão central e invariável: o conflito em Caxemira, que envolve a Índia e o Paquistão, nunca é qualificado em termos da sua legalidade: Caxemira é “disputada”. Ponto final. Não há registos, por exemplo, de grandes manifestações em Londres e Paris contra a ilegalidade da ocupação turca do norte de Chipre, e o conflito curdo-iraquiano não desperta o mínimo interesse, nem legal nem outro, na opinião pública ou publicada. Se na maior parte dos casos as esferas do direito e da geopolítica são totalmente distintas e autónomas, e analisadas tendo como pressuposto essa distinção e essa autonomia, no caso de Israel elas são praticamente fundidas até à total indistinção. A forma como enquadramos um conflito também é parte do conflito.
O actual conflito na Ucrânia permite uma comparação oportuna. As análises ao exercício de legítima defesa da Ucrânia nunca incluem, por parte dos “especialistas”, recomendações a Zelensky sobre “proporcionalidade” e prelecções sobre a inocência dos civis russos. José Milhazes, por exemplo, é capaz de ir à rádio de manhã defender que a Ucrânia está a travar uma guerra defensiva e, portanto, todos os meios de defesa de que se sirva são legítimos contra a agressão russa (“a Ucrânia tem direito a defender-se com os mesmos meios que a Rússia emprega”) – e à noite estar numa televisão a fazer a defesa de que Israel, travando uma guerra defensiva contra uma organização terrorista que usa os seus próprios civis como escudos humanos e hospitais como centros de comando (admitido pelo próprio), não tem legitimidade de se defender plenamente (“Esta ofensiva de Israel irá despertar um espírito anti-israelita nos países árabes e em algumas capitais europeias”).
Israel tem, pois, todo o direito de travar uma única guerra, que é ao mesmo tempo uma guerra única: a guerra em que ninguém morre, a não ser judeus; em que ninguém sofre, a não ser judeus; em que ninguém é desalojado ou hospitalizado, a não ser judeus. Em que a parte agredida tem como responsabilidade primeira a de proteger a parte agressora mais do que a parte agredida que está à sua responsabilidade; em que Israel tem mais deveres de protecção da população de Gaza do que o Hamas que a governa; em que Israel é obrigado a preservar intactos os hospitais, as escolas e as mesquitas que o Hamas armadilha e a partir dos quais ataca Israel. De acordo com o enquadramento legal vigente que rege estas matérias sensíveis, a guerra que não existe é a única guerra que Israel pode travar pela sua existência. Israel tem todo o direito de travar uma guerra impossível – e nenhuma outra.
No caso (sempre único e isolado) de Israel, o especialista em relações internacionais, tornado advogado instantâneo, suspende o seu ofício de compreensão do mundo e activa o seu anseio de transformá-lo: não há “análise” (que é a designação que actualmente a propaganda atribui à propaganda) que não se sirva de expressões como “direito internacional”, “proporcionalidade”, “crimes de guerra”. Obviamente que o uso destas expressões, fortemente armadilhadas para paralisar a compreensão, se dirige apenas a Israel e à sua acção, nunca aos seus agressores e às suas agressões. Esta hiper-juridificação do conflito não é, no entanto, acidental. Ela é essencial ao seu propósito, o qual visa sobretudo um duplo condicionamento: (1) condicionar Israel à absoluta inacção – em termos práticos, à capitulação – perante as agressões de que é vítima e (2) condicionar os “analistas” à escolha entre duas escolas: a da cobardia e a da indecência. Ou seja, ou a equivalência moral entre bebés degolados e degoladores de bebés (em termos musicais, “Imagine there’s no heaven”) ou a superioridade moral dos degoladores de bebés (em termos musicais, “From the river to the sea”).
A partir da articulação deste duplo condicionamento, é possível construir a percepção generalizada de que tudo aquilo que é feito a Israel é legítimo, mesmo que ilegal (como degolar bebés), e de que tudo aquilo que Israel faz é ilegal, mesmo que legítimo (como punir a degolação de bebés). Israel tem toda a legitimidade de se defender, obviamente – desde que não se defenda. Porque defender-se é simultaneamente um direito e um crime: exercer o direito é, ipso facto, cometer o crime; a única forma de não cometer o crime é não exercer o direito. Maravilhoso Catch-22. É o direito como criminalização do próprio exercício do direito. É o direito como criminalização daquilo mesmo que o direito tem como função assegurar. É o direito como impossibilidade de exercer o direito. O nome deste direito anti-direito, esplendorosamente orwelliano, é “direito internacional”.
Quando incide sobre Israel, o direito internacional – raramente especificado e invariavelmente distorcido – constitui a própria abolição do direito. Na medida em que visa a proscrição de um único povo e a sua remoção da família dos povos, actuando assim como um instrumento de discriminação legalizada, o “direito internacional” são as Leis de Nuremberga das nações. Israel não é uma nação, é o Untermensch das nações, é o dhimmi das nações, criatura de classe inferior e proibida, agora como outrora, de se defender: “forbidden to strike a Muslim, carry arms, ride horses” (Benny Morris). O acto de atirar pedras aos judeus por parte das crianças muçulmanas tem raízes muito anteriores ao surgimento do corrente conflito. Constitui, como conta Bernard Lewis em The Jews of Islam (1984), um velho fenómeno relatado por vários observadores: “To all this the Jew is obliged to submit; it would be more than his life was worth to offer to strike a Mahommedan”. A “dhimmização” de Israel, essa sim, não acontece num vácuo.
Décadas de desumanização dos israelitas por parte da imprensa ocidental conduziram à absoluta dormência moral relativamente ao sofrimento de um dos lados do conflito. Desumanização que persiste, mesmo após o pogrom de 7 de Outubro. Quem se der ao trabalho de fazer um levantamento das primeiras páginas do Público dedicadas ao conflito desde o passado 8 de Outubro, verá que nem por uma vez o sofrimento israelita é captado e transmitido. Em Israel, que não passa de uma grotesca abstração militar, não existem humanos, apenas soldados; não existem casas, apenas tanques; não existem mortos, apenas estatísticas. Todas as crianças apresentadas, mortas ou aterrorizadas, são palestinianas. Não há mater dolorosa israelita neste conflito: toda a Pietà é palestiniana. Os bebés israelitas carbonizados e mutilados, as raparigas israelitas violadas e desfiladas, os idosos israelitas mortos e humilhados nunca fazem primeira página. Não se vêem nem se ouvem. É como se nunca tivessem morrido. É como se nunca tivessem sequer existido. É como se fossem apenas, de novo, cinza cuspida da chaminé de um crematório nazi e levada pelo vento: “nem os mortos estarão em segurança”, alertou, não há muito, Walter Benjamin.
É uma segunda morte em cima da primeira. Um novo rapto a somar ao velho. A inexistência de fotos na imprensa não é, no essencial, moralmente diferente da nova moda que consiste em rasgar e deitar ao lixo os cartazes com as fotos dos sequestrados em Gaza. O sofrimento judaico não pode ser visto nem exposto em público. Sob pena de começarmos a colocar a nós mesmos a eterna questão de Shylock: “Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die? And if you wrong us, shall we not revenge?”
Nem uma foto dos reféns. Nem uma foto dos bebés mortos. Nem uma foto das jovens violadas. Se compararmos esta ocultação deliberada com as famosas fotos da guerra no Vietname, teremos uma ideia, ainda que vaga, do ponto a que a nossa imprensa desceu. Expor o monge budista que se auto-imola numa rua de Saigão (World Press Photo of the Year, 1963), ou o tiro na cabeça de um suspeito vietcong por parte de um oficial vietnamita (World Press Photo of the Year, 1968), ou a menina aterrorizada que foge, completamente nua, de um ataque acidental de napalm (World Press Photo of the Year, 1973), era revelar à opinião pública “the terror of war”. Onde está a menina israelita? A menina nua, aterrorizada, sequestrada, violada, morta? Não existe. Nunca existiu. Todas as meninas são palestinianas. Em casa, em agonia, não há nenhuma mãe à espera da menina israelita. Porque, como as meninas, todas as mães à espera em casa e em agonia são palestinianas. As primeiras páginas não mentem: a menina israelita, já morta ou ainda sequestrada, não existe. Nunca existiu.
Este conflito não é, na sua essência, sobre território. É sobre esta menina. Não é um conflito imobiliário. Não é um conflito geográfico. Numa coisa os anti-sionistas (isto é, os anti-semitas, de esquerda e de direita, cada vez menos envergonhados) têm razão: este é um conflito sobre o direito. Não sobre o direito internacional, mas sobre o direito de existir. Sobre o direito, portanto, de que dependem todos os outros. Sobre a existência, o direito à existência, daquela menina nua que não existe. Os milhares (milhões?) que hoje gritam nas ruas “From the river to the sea”, não disfarçam já que é – sempre foi e sempre será – sobre o direito de existir. Quem viu o pogrom daquela manhã sabe que o 7 de Outubro não é apenas mais um episódio do longo conflito. Não é parte do conflito: é onde o conflito se parte. O 7 de Outubro não é mais um capítulo da história do conflito – é o instante, paradoxalmente sombrio e luminoso, crepuscular e amanhecente, em que todo o conflito se suspende, se confessa e expõe, de uma vez por todas, o terrível segredo da sua origem e perpetuação: se isto é um povo.
Crédito: Observador